26 fevereiro 2008

A Carroça

Os jogos high-tech e as brincadeiras infanto-juvenis dos dias de hoje não guardam semelhança com as minhas reminiscências lúdicas, do mesmo modo que essas se dissociam das contadas por meu pai e seus amigos.

À véspera dos eventos sociais, eles sempre pensavam e articulavam uma arteirice. Ou, como diziam em alemão, “ein lustiger Streich”! Uma dessas histórias me divertia especialmente: era uma molecagem que hoje seria considerada um caso de polícia!

Era mais um sábado com expectativa de diversão. Afinal, logo mais, à noite, haveria um grande baile. Bailes e quermesses eram as principais atividades sociais de então, sendo quase sempre realizados no salão da casa comercial, nos armazéns de fumo, e até mesmo na casa paroquial.

As famílias vinham das “picadas”, das “linhas”, das “entradas”, dos “travessões”, estas referências cartográficas que identificavam as pequenas localidades riscadas no mapa para receber os imigrantes europeus.

O local do presente relato é o Rio Pequeno, minha terra natal, distrito do hoje município de Sinimbu, outrora pertencente a Santa Cruz do Sul.

O “Kleine Rio”, na expressão de seu povo, é uma localidade muito bonita, entrecortada pelas águas lentas do rio que batiza a vila. Com ares europeus, seus morros parecem colchas de retalhos, pedaços coloridos do plantio de frutas, milho, feijão, batata, fumo e pasto para o gado.

Tipicamente uma colônia alemã, seus integrantes cultuam os nobres sentimentos da família, da fé, do trabalho e dos valores sócio-comunitários.

Muitos dos que vinham ao baile em carroças desatrelavam seus animais, proporcionando-lhes descanso enquanto transcorria a festança. Alinhadas, as carroças dividiam o espaço com os ascendentes automóveis, que prenunciavam uma nova época.

O baile iniciara fazia mais de hora. Sob o ritmo animado da orquestra, entre polcas e valsas, o salão lotado explicava o vazio da rua. Salvo a presença de meu pai e seus amigos, quase anônimos, abrigados pela noite!

Entre quinze e dezoito anos de idade, corpos torneados e fortalecidos nas duras tarefas coloniais, tinham a força e a agilidade necessárias para a pensada empreitada.

Surpreendentemente, o alvo da planejada molecagem não era um automóvel, o fascínio de todas as idades; os olhos desses jovens estavam voltados para uma carroça, que estava estacionada ao lado de um grande armazém de fumo.

Certos da discrição de seus movimentos, cercaram a carroça e, em ritmo febril, se puseram a desmontá-la. Rodas, eixos, bretes, varais, uma a uma as peças essenciais da carroça eram desarticuladas.

Enquanto se dava o organizado desmonte, metade do grupo escalava o armazém, posicionando-se estrategicamente sobre o telhado.

Munidos de cordas, iniciaram a transferência das peças da carroça do chão para o telhado. Metódicos e rápidos, montaram a carroça sobre a cumeeira. Duas rodas de cada lado, eqüidistantes e em ponto de equilíbrio.

Imagem excêntrica e delirante, com seus varais erguidos para o céu como em oração a carroça sobre o telhado do armazém parecia uma torre de igreja. Um fruto da arteirice em homenagem à fé!

(Vide bula: a falta de um contexto temático e a despretensiosa entonação poética deste artigo têm função antiestresse, e sua leitura é recomendada para amenizar a irritação com a roubalheira e a sucessão de escândalos no governo).

21 fevereiro 2008

Réquiem para Fidel


Uma das passagens mais comovedoras da história mundial recente foi a derrubada da ditadura cubana de Fulgêncio Batista, em 1959, perpetrada por um grupo de jovens idealistas, liderados por Fidel Castro.

Fraudadas as expectativas de justiça e igualdade pelos tiranos comunistas europeus, o sonho do socialismo se renovava, agora na pequena ilha, até então lugar de veraneio e exploração comercial norte-americana.

Rapidamente, Fidel e Guevara se transformaram em ícones mundiais da juventude e das elites intelectuais, ainda traumatizadas pelos efeitos das guerras recentes e a frustração soviética.

Correu o tempo, quase 50 anos, e o mundo experimentou diversas mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais.

Entre estas mudanças, as mais significativas foram a desconstituição da União Soviética e a queda do Muro de Berlim. Sepultamento, definitivo, da idéia do partido único e do dirigismo estatal!

Mas o tempo parara em Cuba. Perpetrara-se uma ditadura personalista e reacionária, a exemplo dos decadentes e decaídos modelos europeus, embora mantido o discurso da pretensão socializante.

Descontado o regime e o estilo jurássico, ainda assim persistia, como persiste em alguns meios políticos e intelectuais, uma tolerância com Fidel.

No entanto, a realidade é que faz muito tempo, mais de 20 anos, que as ilusões perderam-se em meio às atrocidades e abusos cometidos em nome do regime político.

Não faz muito tempo, haja vista a notícia do fuzilamento de três dissidentes/fugitivos do regime, Cuba e Fidel voltaram às manchetes, perdendo seus últimos simpatizantes.

E, recentemente, a pá de cal. Diante da notícia da grave enfermidade de Fidel, noticiou-se a transferência do poder ao seu irmão Raul Castro, seu sucessor natural. Quer dizer, monárquico, dinástico.

Pobre povo cubano. Materialmente falta-lhe tudo, mas falta-lhe, ultimamente, a indignação e a rebeldia.

Mas ainda assim não faltam a Fidel a tietagem e homenagens prestadas por seus súditos, que insistem em permanecer algemados ao passado, encurralados por seus sonhos e idealizações juvenis, tiranizados por uma ilusão discursiva e uma prática cínica e cruel.

Os discursos acerca da paz, da liberdade e da prosperidade, ideais humanos e universais, sempre patrocinaram e gestaram tiranos.

Como bem ensina o poeta alemão Friedrich Hoelderlin (1770-1843), profeticamente: “o que sempre fez do Estado um verdadeiro inferno na terra foram precisamente as tentativas de transformá-lo num paraíso”.

19 fevereiro 2008

A Voz do Menino

Se você não pensa ao menos uma vez por dia nas contradições grotescas e gritantes de nossa comunidade, desde o pequeno interior, desde o distante grotão ao centro urbano maior de nosso derradeiro Brasil,

nas promessas originais e sem pecado dos homens públicos, vendedores de esperanças e paraísos terrestres, que apenas se concretizam nos limites diários de suas ações pessoais entre amigos e parentes, feitos de polpudas diárias e auto-aumentos generosos - como se dinheiro (alheio) desse como fruto em árvores,

se você não pensa sobre o fato de que se utilizam da liberalidade das leis e de nossa santa democracia, a esta altura totalmente prostituída e devassada em sua prometida pureza e inocência e vocacionado bem-querer,

ou ainda, se você não pensa nos impostos cada vez mais escorchantes e seus destinos invisíveis aos olhos e necessidades do povo, mas literalmente palpáveis aos bolsos particulares e alimento fácil de uma máquina gigante sem objetivos, sem dono e sem razão,

na corrupção e nos abusos do poder econômico, jurídico, judicioso e judicial, de gravatas, togas e becas soberbas e ensimesmadas, legislantes e vociferantes, de decisões estapafúrdias,

se você não pensa nos decretos, normas, leis e decisões governamentais e estatais, todas em torno do próprio umbigo, criando uma insólita realidade paralela, de autoridades devassas e delirantes que continuam solenes (e como se pretendem!), trocando entre si medalhas e outorgas e títulos, em poses e sorrisos caricaturais,

ou ainda, na violência objetiva e subjetiva, invasiva e evasiva, incisiva e corrosiva, que já nos dilacerou completamente, tragando nossos centavos e nosso corpo, e ainda insatisfeita e desalmada engole nossos espíritos e dilacera nossos corações filiais,

se você não pensa nestes assuntos e não reage com veemência, ou se você acha que está tudo bem, ou admite que já não há mais possibilidades de reação, ou, está indiferente às perspectivas de se construir uma nação justa e cordial,

se você não pensa ao menos uma vez por dia nesses assuntos, e não se agita, e não se irrita, e não se debilita, você já perdeu sua capacidade de indignação,

e se não há mais indignação, não há mais esperança!!!

(Enquanto escrevo essas palavras, a agulha de diamante roça o velho disco de vinil, e Milton Nascimento, em “Bola de gude, bola de meia”, me lembra:

“Há um menino (...) morando sempre no meu coração, toda vez que o adulto fraqueja ele vem pra me dar a mão (...).

Ele fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir. Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor.

Não posso aceitar sossegado qualquer maldade ser coisa normal. Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão. Toda vez que a bruxa me assusta o menino me dá a mão.”)

12 fevereiro 2008

O Dinheiro "dos Outros"

A exemplo do mais recente - os cartões de crédito corporativo, os sucessivos escândalos com malversação de dinheiro público tem em comum um fato, uma característica, que merece maiores reflexões e análises.

Objetivamente, refiro-me à indiferença e omissão de pessoas, autoridades e instituições, cuja tarefa precípua seria justamente observar a impropriedade de determinadas operações, despesas e a desproporção de valores.

Sucedem-se as transações expressivas e suspeitas, que tanto indignam a população brasileira, como se não houvesse outro brasileiro na outra extremidade do balcão, do negócio, da operação.

E quando não há uma simples pessoa física na outra parte do negócio, há, com certeza, uma autoridade, uma chefia superior, ou uma instituição, responsáveis pela conferência e vigilância. E o que ocorre?

Ocorre que tudo é ignorado, olimpicamente, por uma razão muito singela: é dinheiro dos outros, público ou privado, é dinheiro dos outros. E o dinheiro dos outros, safadamente, é doce de gastar, dilapidar e usurpar!

A título de exemplo, como explicar e admitir que no famoso caso do “juiz Lalau” e a construção do prédio do judiciário paulista, ninguém mais tenha observado, com olhos de razão e ponderação, a desproporção dos valores constantes nos processos de compra e pagamento de materiais.

Ademais, nos dias atuais, não requer muito estudo, escolaridade, conhecimento, leitura de jornais e classificados, compra em supermercados, para se saber o preço médio e razoável de qualquer coisa.

Do mesmo modo, é de se supor que se um “João qualquer” se apresentar com um cartão de crédito do governo federal, deva merecer mais atenção cívica e ética do respectivo vendedor ou prestador de serviços.

Continuando: então, como explicar a sucessão dos negócios que redundam em escândalos - não no ato da operação como seria de se esperar, apenas muito depois e por motivos alheios às tarefas cívicas e institucionais específicas? Infelizmente, a resposta é porque é “dinheiro dos outros”!

Se já não há mais respeito à propriedade privada e pública, se a locupletação é generalizada, se a manutenção e ampliação de privilégios ofensivos à realidade nacional são argüidos e equiparados constitucional e descaradamente, qual é, ou deveria ser, o núcleo de nossa indignação?

Se o nosso dinheiro, público e privado, fruto de trabalho e recolhimento de impostos, aos olhos e desejos de governantes, autoridades e seus asseclas públicos e privados resume-se ao simples “dinheiro dos outros”, e por isto não merecedor de cuidados e passível de saque e apropriação indébita e imoral, o que nos resta como razão de indignação e reação?

O gigantismo do Estado e o mau caratismo do brasileiro são dois bons assuntos para se debater! Se não pudermos resolver os dois ao mesmo tempo, a superação e a solução de um já ajudaria a diminuir a influência do outro.

E, lógico, diminuir o tamanho do assalto continuado!

06 fevereiro 2008

A ordem é saquear!

Repetindo o que já havíamos dito em artigos anteriores, a propósito da natureza da política, dos políticos e da "companheirada", sobretudo relativamente ao seu instinto de sobrevivência: para compreender-se a idéia de oportunismo político, comportamento inerente a condição do político em geral, condição de sobrevivência na “selva da dialética”, deve-se observar sua perspectiva política(carreira). Neste caso, há o aparelhamento do Estado e da coisa pública. Em não havendo perspectiva de carreira imediata, há o saque!

Melhor dizendo: um político raramente é o que tem sido, ou é o que foi ontem, mas é o que pode vir a ser. Por isto, muda o discurso, muda o comportamento, muda de companheiros, muda o que for necessário e de acordo com a nova função, a nova tarefa, o novo mandato, a nova perspectiva.

Trata-se da “instrumentalização do poder, do aparelhamento do estado”. Afinal, são os “novos donos do poder”.

Uma maravilha o dinheiro público. O dinheiro dos outros é sempre mais saboroso. E onde estão os moralistas da "antiga ordem", as comissões de ética, os republicanos?



04 fevereiro 2008

Teu outro cartão de crédito!

Sabias que tu tens outro cartão de crédito, usado por estranhos e pago por ti, denominado cartão de crédito corporativo?

Os cartões de crédito do governo servem para que determinados servidores possam fazer pagamentos ou saques sem precisar de uma autorização prévia.

O uso dos cartões de crédito corporativos foi criado em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso(1995-2002), para facilitar os pagamentos de rotina das autoridades, limitados a pequenos valores.

Ainda assim, em 2002, o pagamento de faturas e saques com cartões da Presidência da República somou R$ 1,3 milhão.

Já no Governo Lula, em 2004, os gastos com cartões da Presidência atingiram R$ 5,2 milhões. Além disto, outros 68 órgãos federais gastaram R$ 8,9 milhões, sendo R$ 5,1 milhões em dinheiro vivo.

Em 2005, o total de gastos foi de R$ 21 milhões. Dos quais R$ 10,2 milhões foram da Presidência, com saques em dinheiro de R$ 6,8 milhões.

O funcionário recordista no uso dos cartões para realizar saques movimentou quase R$ 330 mil entre os meses de janeiro e dezembro de 2005. Em dinheiro vivo. Outros dois colegas movimentaram R$ 321 mil e R$ 294 mil.

Entre os 48 ecônomos de departamentos e órgãos ligados ao Palácio do Planalto, oito sacaram acima de R$ 250 mil durante aquele ano, registrou o Siafi.

Em meados de 2006, segundo dados do Sistema Integrado de Administração Financeira - Siafi, já haviam sido gastos R$ 34,4 milhões.

Só a Presidência já havia gasto R$ 10 milhões. Dos R$ 10 milhões, metade foram saques em dinheiro vivo.

O Ministro Marcos Vilaça, do Tribunal de Contas da União-TCU, responsável pela fiscalização, anotou em seu relatório: “A equipe de auditoria registra a existência de dificuldades para a obtenção de detalhes relativos às transações efetuadas com cartão de crédito".

A falta de transparência é mais grave nos saques em dinheiro. Sem registros dos fornecedores de bens e serviços nas faturas dos cartões de crédito.

Diante da pressão por informações, a Secretaria de Administração da Presidência da República informou que “não é permitido o fornecimento de informações detalhadas dos gastos com as peculiaridades da Presidência da República, por questões de segurança".

No último debate presidencial, falando em caixa-preta do cartão de crédito corporativo, o candidato Geraldo Alckmin perguntou a Lula: “O cartão corporativo do seu gabinete teve crescimento exponencial. O senhor abre o sigilo dos gastos do cartão de crédito?"

Satisfeito? Melhor ficar! Imagina se tu ficas sabendo de todos estes gastos, um a um, detalhadamente, quem gastou o quê, por quê, quando e com quem? Melhor não saber.

Mas tem o lado bom desta história. Tu nem sabias que tinha todo esse crédito em conta, hein? Mas tem que entrar na fila para usar o “teu outro cartão de crédito”!