19 fevereiro 2008

A Voz do Menino

Se você não pensa ao menos uma vez por dia nas contradições grotescas e gritantes de nossa comunidade, desde o pequeno interior, desde o distante grotão ao centro urbano maior de nosso derradeiro Brasil,

nas promessas originais e sem pecado dos homens públicos, vendedores de esperanças e paraísos terrestres, que apenas se concretizam nos limites diários de suas ações pessoais entre amigos e parentes, feitos de polpudas diárias e auto-aumentos generosos - como se dinheiro (alheio) desse como fruto em árvores,

se você não pensa sobre o fato de que se utilizam da liberalidade das leis e de nossa santa democracia, a esta altura totalmente prostituída e devassada em sua prometida pureza e inocência e vocacionado bem-querer,

ou ainda, se você não pensa nos impostos cada vez mais escorchantes e seus destinos invisíveis aos olhos e necessidades do povo, mas literalmente palpáveis aos bolsos particulares e alimento fácil de uma máquina gigante sem objetivos, sem dono e sem razão,

na corrupção e nos abusos do poder econômico, jurídico, judicioso e judicial, de gravatas, togas e becas soberbas e ensimesmadas, legislantes e vociferantes, de decisões estapafúrdias,

se você não pensa nos decretos, normas, leis e decisões governamentais e estatais, todas em torno do próprio umbigo, criando uma insólita realidade paralela, de autoridades devassas e delirantes que continuam solenes (e como se pretendem!), trocando entre si medalhas e outorgas e títulos, em poses e sorrisos caricaturais,

ou ainda, na violência objetiva e subjetiva, invasiva e evasiva, incisiva e corrosiva, que já nos dilacerou completamente, tragando nossos centavos e nosso corpo, e ainda insatisfeita e desalmada engole nossos espíritos e dilacera nossos corações filiais,

se você não pensa nestes assuntos e não reage com veemência, ou se você acha que está tudo bem, ou admite que já não há mais possibilidades de reação, ou, está indiferente às perspectivas de se construir uma nação justa e cordial,

se você não pensa ao menos uma vez por dia nesses assuntos, e não se agita, e não se irrita, e não se debilita, você já perdeu sua capacidade de indignação,

e se não há mais indignação, não há mais esperança!!!

(Enquanto escrevo essas palavras, a agulha de diamante roça o velho disco de vinil, e Milton Nascimento, em “Bola de gude, bola de meia”, me lembra:

“Há um menino (...) morando sempre no meu coração, toda vez que o adulto fraqueja ele vem pra me dar a mão (...).

Ele fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir. Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor.

Não posso aceitar sossegado qualquer maldade ser coisa normal. Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão. Toda vez que a bruxa me assusta o menino me dá a mão.”)

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