30 março 2006

Em continuação ao debate que propomos na edição anterior, sob o título Globalização e Sociedade, entendemos valiosa a divulgação de um texto sobre o mesmo tema, embora mais abrangente, subscrito pelo intelectual, político e professor/reitor universitário frances Ignácio Ramonet. Este texto já tem alguns anos, mas sua atualidade é impressionante. Merece uma leitura atenta e reflexiva.

Regimes Globalitários

por Ignacio Ramonet


Chamava-se “regimes totalitários”, aqueles regimes de partido único, que não admitiam nenhuma oposição organizada, que subordinavam os direitos da pessoa à razão do Estado, e dentre os quais o poder político dirigia soberanamente a totalidade das atividades da sociedade dominada.
A estes sistemas sucedeu, neste fim de século, um outro tipo de totalitarismo, aquele dos “regimes globalitários”. Repousando sobre os dogmas da globalização e do pensamento único, eles não admitem nenhuma outra política econômica, subordinam os direitos sociais do cidadão a razão competitiva, e entregam aos mercados financeiros a direção total das atividades da sociedade dominada.
Nas nossas sociedades desorientadas ninguém ignora a potência deste novo totalitarismo. Conforme uma pesquisa recente de opinião, 64% das pessoas interrogadas estimavam que “são os mercados financeiros que possuem o maior poder hoje na Franca”.
Depois da economia agrária, que prevaleceu durante milênios, depois da economia industrial, que marcou os séculos XIX e XX, nós entramos na era da economia financeira global. A mundialização matou o mercado nacional, que constituía um dos fundamentos do poder do Estado-Nação. Anulando-o, ela tornou o capitalismo nacional tremendamente obsoleto e diminuiu o papel dos poderes públicos. Os estados não tem mais a capacidade de se opor aos mercados. O volume das reservas dos bancos centrais é ridiculamente fraco face a força dos especuladores.
Os estados não dispõem mais de meios para frear os formidáveis fluxos de capital nem para se oporem a ação dos mercados contra seus interesses e aqueles de seus cidadãos. Os governantes se dobram as ordens gerais de política econômica, que organismos mundiais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou o OCDE. Na Europa, os celebres critérios de convergência estabelecidos pelo tratado de Maastricht (déficit do budget e endividamento publico reduzido, inflação contida) exercem uma verdadeira ditadura sobre a política dos Estados, fragilizando o fundamento da democracia e agravando o sofrimento social.
Se dirigentes afirmam crer na autonomia da política - “Nos não somos pés e punhos ligados em um mundo que se imporia a nos”, declaram alguns, sua intenção de resistência assemelha-se a um blefe, já que eles emendam imediatamente como segue: “ A situação internacional é caracterizada pelo livre movimento de capitais e de produtos, aquilo que chamamos a mundialização.” E que eles reivindicam, com insistência, “esforços de adaptação” para esta situação.
Portanto, em tais circunstancias, o que é adaptar-se? Simplesmente admitir a supremacia dos mercados e a impotência dos políticos. Semelhante é a lógica destes regimes globalitarios. Favorecendo, durante os dois ultimos decênios, o monetarismo, a desregulamentacão, o livre cambio comercial, o livre fluxo de capitais e as privatizacoes em massa, os responsáveis políticos permitiram a transferência de decisões capitais (em materia de investimentos, de emprego, de saúde, de educação, de cultura, de proteção do meio-ambiente) da esfera pública a esfera privada.
É por isto que, atualmente, dentre as cem primeiras economias mundiais, mais da metade não são países, mas empresas. O fenômeno da multinacionalização da economia desenvolveu-se de maneira espetacular. Nos anos 70, o número de sociedades multinacionais não passava de poucas centenas. Ele ultrapassa doravante os 40.000. E se considerarmos o número de negócios globais das 200 principais empresas do planeta, seu montante representa mais de um quarto da atividade econômica mundial. E, no entanto, essas 200 firmas não empregam mais que 18,8 milhões de assalariados, ou seja, menos de 0,75% da mão-de-obra planetária... O número de negócios da General Motors é mais elevado que o produto nacional bruto (PNB) da Dinamarca, o da Ford é mais importante que o PNB da África do Sul, e o da Toyota ultrapassa o PNB da Noruega. E nos nos encontramos aqui no domínio da economia real, aquela que produz e troca bens e servicos concretos. Se nos adicionarmos a isto os atores principais da economia financeira (cujo volume é cinquenta vezes superior a aquele da economia real), isto é, os principais fundos de pensão americanos e japoneses, que dominam os mercados financeiros, o peso dos Estados torna-se insignificante.
Cada vez mais os países que venderam massivamente as suas empresas públicas para o setor privado e desregulamentaram os seus mercados, tornam-se a propriedade de grandes grupos multinacionais. Estes dominam inteiramente a economia do sul. Eles servem-se dos Estados locais para exercer pressão no seio dos foruns internacionais e obter decisões políticas as mais favoráveis para a continuação de seus domínios globais.
Esses fenômenos de mundializacao da economia e de concentração do capital, tanto ao sul como ao norte, quebram a coesão social. Eles agravam, em toda a parte, as desigualdades econômicas, que se acentuam a medida que aumenta a supremacia dos mercados. Por isso, a obrigação de revolta, o direito a agitação popular tornam-se novamente cidadãos imperativos para recusar esses regimes globalitários inaceitáveis. Já não é tempo de reclamar a entrada , em escala planetária, de um novo contrato social?